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Mãe da cracolândia: Ex-viciada se dedica a ajudar dependentes em SP

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O nome dela é Eliana Toscano, 46, paulistana formada em letras, que já chega ao local da reportagem dando um forte abraço em todos e falando bastante, sem parar.

Já estavam à sua espera três “conviventes”, como se tratam entre si os dependentes químicos do chamado fluxo da cracolândia, legião de deserdados da cidade que perambulam em bandos pelas ruas centrais de São Paulo.

Sem ninguém pedir, Eliana abre a bolsa e vai mostrando as lembrancinhas que recebeu do povo da rua, que ela trata como se fossem todos de sua família. Entre as prebendas, meia dúzia de cachimbinhos de fumar crack, a única droga que ela diz nunca ter usado. “Tenho ciúme deles, não dou para ninguém. Ganhei de quem parou de se drogar.”

Viciada em cocaína até 20 anos atrás, ela começou a cuidar dos outros por conta própria, desenvolvendo projetos socioeducativos antes mesmo da formação da cracolândia nos anos 90.

Hoje, “no auge dos 46 anos”, como sempre repete, após breve período como funcionária do “Atende 3”, uma das tendas de atendimento emergencial da Prefeitura de São Paulo, ela voltou a tratar dos seus “conviventes” por conta própria.

Na praça Princesa Isabel, aos pés da estátua do Duque de Caxias, Eliana conversava longamente com um deles na tarde de sexta-feira (9). Atendendo ao seu pedido, empresta a Bolívar Rafael, 50, cadeirante, negro e homossexual, lápis de olho e batom para ele retocar a maquiagem.

“Meu nome de rua é Ramon“, diz ele, sempre de chapéu preto sobre as longas tranças rastafári, elegante em suas roupas velhas em tons de cinza, enquanto espera um amigo para empurrá-lo de volta ao albergue provisório que se tornou permanente.

“É para falar a verdade ou você prefere que eu conte mentiras?”, pergunta ao repórter antes de falar da vida. Bolívar não conheceu o pai, a mãe é doméstica e há tempos não vê a única irmã, Rosinéia.

Os “conviventes” tornaram-se a sua família após parar de trabalhar, faz dez anos, impossibilitado por uma doença grave, a polineuropatia periférica. Antes, fez de tudo no ramo da hotelaria: pizzaiolo, barman, ajudante de cozinha, copeiro e também cabeleireiro.

Eliana o ajuda a se maquiar e presta muita atenção na conversa como se fosse a primeira vez que ouvisse a história. Dar atenção é a principal arma desta voluntária social para cativar os dependentes.

Aposentado pelo INSS com R$ 950 por mês, Bolívar ou Ramon diz ter casa em Guarulhos, mas por que então vive na rua e dorme no “Atende 3” com outros 800 albergados?

“Venho pouco aqui na praça, só quando estou interessado em algum homem, porque sou homossexual. De tanto cuidar bem da gente, os outros funcionários tinham inveja da Eliana e ela começou a sofrer repreensões. Por isso, foi embora”,diz, fazendo carinho em Eliana, que não se queixa do que aconteceu.

Na rodinha que se forma à sua volta, lembram que ela sempre chegava antes dos outros funcionários, às seis da manhã, gritando “bom dia!”, e aí era uma festa.

“Não queriam que desse beijinho e fizesse carinho no pessoal. Agora estou mais próxima deles porque a vida está na rua. A rua é a vida deles. Outro dia vi uma frase no Centro Cultural Banco do Brasil que achei perfeita: “Ninguém manda no que a rua diz”.

E o que levou para as ruas Eliana Toscano, filha de empresário do setor automotivo casado com funcionária pública? Ela que nasceu numa maternidade dos Jardins e morava numa boa casa “com frutas e bichos” em Cidade Ademar. Como veio parar aqui?

‘SÓ POR BRINCADEIRA’

Antes de responder, Eliana beija e abraça uma mulher do fluxo, bem magra e abatida, que lhe dá de presente uma camiseta. “Meus pais tiveram revezes na vida e foram trabalhar como zeladores de uma escola pública. Mudamos para lá. Minha vida muito louca começou quando minha irmã Rita de Cássia, aos 22 anos, foi brutalmente assassinada por um ex-noivo que era traficante de cocaína. Foi o meu primeiro contato com drogas.”

Eliana fica séria quando lembra que começou a consumir pó “só por brincadeira” e poucos dias depois estava na favela Vietnã, Vila Santa Catarina, procurando uma “biqueira” para comprar droga.

“O primeiro ‘tiro’ de cocaína a gente nunca esquece. Lógico que gostei. Eu tinha 22 anos, já estava formada e trabalhando”. Foi aprovada num concurso da Polícia Civil, mas saiu de lá antes de completar um ano no serviço administrativo da Casa de Detenção, depois do célebre massacre em que morreram 111 presos.

“Sou muito questionadora, não gostava de ver coisas erradas. Desde criança sempre quis ajudar os outros, os mais necessitados. Não tenho maldade, não tenho medo, não posso ver ninguém sofrendo”.

Mãe de duas jovens, de 12 e 17 anos, continua fazendo cursos de capacitação e ganha a vida com aulas particulares e trabalhos temporários, que vão de contar histórias de palhaços em festas infantis a saraus eróticos como o que apresentou outro dia na Nossa Casa, na Vila Madalena.

O QG de Eliana fica no Clube de Mães do Brasil, o “Castelinho da rua Apa“, onde faz planos para a sua ONG (novoprojetosocial@gmail.com) e sonha com o projeto de uma casa de acolhida que não pareça com um albergue, mas uma morada de família.

 

“A ONG sou eu e meus amigos da rua. Me arrisco sempre, mas vou conseguindo as coisas, melhorando a vida de muita gente. Eu não discrimino ninguém. Eles não são violentos como dizem. Vivem é com medo da polícia. Minha mãe dizia: ‘Tudo que não presta, a Eliana está no meio…’.”

Os conviventes ouvem a entrevista de Eliana com orgulho e gratidão, acenando positivamente com a cabeça. “Essa é a nossa mãe para nós”, diz Edgar Silva, um dos três amigos que a acompanharam nas andanças do dia. Quando pergunto o que fazem, Edgar conta que é plaqueiro, segura aquelas placas com ofertas de vagas de emprego; a transexual Cláudia Aparecida Silva diz que “no momento, estou só estudando” e Odair Barbosa está em busca de algum trabalho.

O que os une é a dependência química, a solidão, a depressão, a busca de um lugar melhor no mundo. Ajudá-los, como conseguiu, é a profissão de vida e de fé de Eliana.

Ela sabe por experiência própria do que os amigos falam e dá risada quando alguém lembra a declaração do prefeito João Doria (PSDB) nos primeiros meses de seu governo anunciando que “a cracolândia acabou”, depois de uma megaoperação de limpeza da área e desobstrução de vias e prisão de traficantes.

Enquanto isso não acontece, Eliana faz a sua parte no dia a dia. Agora, ela está preocupada com a decisão da prefeitura de fechar aos poucos os hotéis que abrigam alguns dos viciados e também cortar as últimas “bolsas varrição”, uma ajuda de custo aos dependentes que faziam algum tipo de serviço na região.

Alguns deles vão fazer companhia aos indigentes, muitos deles retirantes de outros países, largados junto à estátua de Caxias na praça Princesa Isabel, onde funcionários cuidavam de consertar os caminhos e embelezar os jardins degradados. Supervisionando tudo, meia dúzia de orientadores socioeducativos da prefeitura com coletes em que se lia “Vida Nova” cumpriam seu expediente.

Fonte: Folha de SP

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