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O Pasquim: jornal de humor que desafiou a ditadura ganha exposição em SP ao completar 50 anos

dez 6, 2019
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Enquanto a Apollo 11 pousava na Lua, e centenas de milhões de pessoas assistiam a Neil Armstrong pisando na lua em televisores preto e branco por todo o planeta, no Rio de Janeiro, praticamente ao mesmo tempo, um grupo de jornalistas e cartunistas também começava a andar em solo desconhecido – e começava uma revolução.

Não a fantasmagórica revolução comunista que serviu como bode expiatório para que a ditadura militar esmagasse o Brasil, mas sim uma revolução na maneira de se fazer um jornal, no humor e nos costumes da época.

O Pasquim nasceu como uma iniciativa do jornalista gaúcho Tarso de Castro, para substituir o tabloide humorístico A Carapuça, editado pelo escritor e cronista Sérgio Porto até sua morte em 30 de setembro de 1968. Tarso convocou o cartunista Jaguar e o jornalista Sérgio Cabral para iniciar a empreitada em compromisso absoluto com a iconoclastia, o deboche irrestrito, o desrespeito às formalidades jornalísticas e o dever de se tornar uma pedra no sapato dos poderosos.

O nome “Pasquim” surgiu por sugestão de Jaguar, em termo que significa “jornal difamador, de pouca qualidade” para adiantar e se apropriar das críticas que sabia que viriam. Rapidamente juntaram-se a esse grupo os cartunistas Ziraldo e Fortuna, o jornalista Paulo Francis, Millôr Fernandes e assim estava formado o escrete principal d’O Pasquim – e começava a revolução, que esse ano completa 50 anos, e que ganha em São Paulo uma exposição em celebração.

Pois entre a morte de Sérgio Porto e o lançamento do Pasquim, a realidade brasileira, que já era terrível desde o golpe militar de 01 de abril de 1964, havia ganhando contornos ainda mais sombrios com a imposição do Ato Institucional nº 5, em uma sexta-feira 13 de dezembro de 1968. A partir do AI-5 o congresso foi fechado, mandatos foram sumariamente cassados, as garantias constitucionais da população foram suspensas, prisões passaram a ser cometidas sem qualquer justificativa jurídica nem direito a habeas corpus, o toque de recolher e a censura prévia tornaram-se oficiais, assim como a tortura. Foi nesse contexto que O Pasquim foi às bancas – e era esse o monstruoso e evidente inimigo que o jornal iria enfrentar, com humor, procurando a cumplicidade com o público e com a indignação nacional como sua arma principal.

Uma grande entrevista estampava a capa de cada edição, e servia como prato principal entre crônicas, quadrinhos, notas, dicas, fotonovelas, reportagens e, em verdade, tudo mais que as mentes brilhantes do Pasquim decidissem publicar. E já no número de estreia se deu uma primeira revolução formal: na hora de transcrever das fitas para o papel a entrevista com o jornalista Ibrahim Sued, Jaguar não utilizou a técnica do “copidesque” – e não traduziu a informalidade da conversa para a dureza da dita linguagem jornalística. A entrevista então foi publicada com a naturalidade, o despojamento e a descontração de um papo entre amigos, e assim, nas palavras do próprio Jaguar, O Pasquim começou a “tirar a gravata” do jornalismo brasileiro.

Em seis meses, o semanário que começou com uma tiragem de 28 mil exemplares, se tornou um dos maiores fenômenos editorias da história do país, alcançando vendagens médias de 100 mil exemplares por semana (maiores então que as vendas das revistas Veja e Manchete somadas) e chegando, em algumas edições, a superar os 250 mil exemplares  – sem assinaturas, somente através de pontos de venda e bancas de jornal. A essa altura, já haviam se juntado ao time outros gigantes do jornalismo e do cartum brasileiro, como Henfil, Martha Alencar, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Luiz Carlos Maciel e Miguel Paiva.

“Quando comecei a trabalhar no Pasquim ele tinha seis meses de vida”, lembra o cartunista Miguel Paiva, em entrevista exclusiva para o Hypeness. “Já era um grande sucesso, e o mais surpreendente é que havia se passado somente um ano da implantação do AI-5, o ato institucional que endureceu de vez a ditadura militar. No período mais dramático da vida brasileira um jornal de humor, transgressor nos costumes e na linguagem, conseguiu sobreviver e criar uma relação de cumplicidade e apoio com o leitor como nunca se tinha visto antes”. Paiva tinha somente 19 anos quando começou a colaborar com O Pasquim, e se a liberdade de expressão tinha os dias contados naquele ano de 1969, ela foi vivida com a intensidade que merece pela equipe do Pasquim.

Temas como sexo, drogas, feminismo, divórcio, ecologia, contracultura, rock n’ roll, comportamento, além, é claro, de política, repressão, censura e ditadura foram tratados nas páginas do tabloide da mesma forma com que se conversava nas mesas dos bares ou, nesse caso, nas areias da então subversiva praia de Ipanema – mas com o toque da genialidade de alguns dos maiores nomes do nosso humor e cartum. Quando a censura começou a perseguir não só O Pasquim como todos que pregavam e viviam o livre pensamento e a liberdade de expressão, foi através do humor indireto e inteligente que o jornal seguiu falando sobre tudo que queria falar – de forma indireta, metafórica, contando com a inteligência e a cumplicidade de seu público, como quem troca uma piscadela secreta que revela o real teor: lutar contra a repressão rindo na cara da censura.

Mas junto com a liberdade de expressão, a alegria irrestrita também tinha os dias contados. Ainda em 1969, a entrevista com Leila Diniz – que publicou todas as corajosas opiniões da atriz, incluindo os 71 palavrões ditos por Leila, os substituindo somente por asteriscos – acendeu a censura, que instaurou, por conta da entrevista, a famigerada Lei da Imprensa, que permitia ao regime a censura prévia aos jornais. A partir desse histórico número 22 do Pasquim, publicado em 15 de novembro de 1969, a ditadura passou a exigir que o jornal enviasse todo seu material para aprovação – ou o esquartejamento – antes de ser efetivamente publicado.

Em 1970, a perseguição indireta ao Pasquim se tornava uma guerra concreta: em 31 de outubro, a redação foi quase toda presa sob o pretexto do jornal ter publicado um cartum desonroso com um quadro de Pedro Américo, que mostrava D. Pedro I na independência, mas gritando “Eu Quero Mocotó”, citando a emblemática canção de Jorge Ben lançada pelo Trio Mocotó no mesmo ano, ao invés do grito do Ipiranga. “Foi o que bastou. Todos em cana.”, conta Miguel. Permaneceram livres e tocando o jornal alguns poucos heróis como Martha Alencar, Chico Jr, Henfil, Millôr e o próprio Miguel. “Ficamos meio clandestinos, meio assustados, tendo a rigorosa missão de fazer o jornal ser publicado sem ninguém perceber que a redação não estava ali”, lembra o cartunista.

Era, afinal, proibido que o jornal divulgasse a notícia da prisão – e os recursos utilizados pela equipe restante para manter a cumplicidade com o público foram muitos. “Tivemos que recorrer a uma súbita gripe coletiva, que teria acometido todos da redação, e que justificava a ausência da equipe principal. Esse drama durou dois meses e meio e, pensando bem nos dias de hoje, afetou em muito a estabilidade comercial do jornal”, diz o cartunista.

“Depois de um certo tempo o leitor começou a perceber a queda de qualidade. Apesar dos nossos esforços, não era o Tarso, o Jaguar, o Sérgio Cabral, o Ziraldo. Todos eram artistas muito singulares e talentosos, e a prisão acabou por começar a derrubar as vendas do jornal”, recorda Paiva.

A redação do Pasquim ficou presa até fevereiro de 1971, e nesse período a classe artística se prontificou a ajudar para que o jornal seguisse em circulação: nomes como Antônio Callado, Chico Buarque, Glauber Rocha, Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade e outros tantos intelectuais passaram a colaborar com a publicação.

O impacto, porém, sufocou o jornal, reduzindo suas vendas e o isolando comercialmente – e, por mais que heroicamente Jaguar tenha seguido publicando até 1991, a partir da metade dos anos 1970 o tabloide jamais teria a mesma força que alcançou em seus primeiros anos. Ziraldo viria a ressuscitar o jornal em uma deliciosa porém breve aventura, intitulada OPasquim21, de 2002 a 2004, que contou com alguns de seus antigos colaboradores e também com nomes da nova geração.

Essa história única e tão importante para o jornalismo brasileiro é contada e celebrada ao completar cinco décadas com a exposição “O Pasquim 50 anos”, no SESC Ipiranga, em São Paulo. A mostra conta com a expografia da cenógrafa Daniela Thomas, filha de Ziraldo, e fica em cartaz até abril de 2020, trazendo capas, entrevistas, cartuns memoráveis, além de tantos trabalhos censurados para o público. Em um contexto como o atual, em que o fantasma da censura e da repressão voltam a assombrar a realidade e a inteligência brasileira, visitar o legado das mais de 1000 edições do jornal é fundamental.

“Não vivemos hoje uma ditadura explícita como aquela que começou em 1964, mas vivemos momentos e situações semelhantes. As consequências do governo Bolsonaro sobre a cultura, mais a crise que assola a imprensa tradicional faz o Pasquim do passado se parecer muito com a imprensa online de hoje”, diz Paiva. “Os jornais impressos vendem muito pouco mas a informação sobrevive na web. Como há 50 anos, existe uma luz no fim do túnel, mesmo que essa túnel seja muito longo”.

O SESC Ipiranga fica na Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga, em São Paulo, e a exposição pode ser visitada de terça à sexta, das 9h às 21h30, aos sábados, das 10h às 21h30, e aos domingos e feriados, das 10h às 18h30. E se o futuro do país é incerto, ao menos a entrada é gratuita.

Fonte: Hypeness

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